Improbidade e o princípio da congruência: a necessidade de revisitar a jurisprudência

Autor: Guilherme Carvalho e Sousa (*)

 

Inicio o presente ensaio com uma crítica que, nada obstante sua aspereza, converte-se em lamentável realidade: a precariedade das decisões judiciais tomadas nos processos que envolvem ações de improbidade istrativa. Não é infrequente nos depararmos com sentenças condenatórias abalizadas unicamente em argumentos doutrinários rasos, em princípios — ou valores principiológicos — que se resumem a lugares-comuns e cuja indisposição quanto a seus fins é praticamente inegável.

Tais sentenças, que mais parecem profilaxias jurídicas a serem exaradas em simpósios jurídicos ou seminários atinentes ao tema, quando não enfrentam a questão central (a improbidade mesma), devotam-se à busca incansável de uma tal violação principiológica que, ao derredor das conclusões mais incertas que apareçam, sempre ensejará uma condenação.

É que é praticamente impossível não remanescer algum espaço para condenar alguém lastreado somente em princípios. Nos casos de improbidade istrativa, ainda que não exista dano ou mesmo enriquecimento ilícito, a imputação de ofensa, por exemplo, ao princípio da eficiência ou da moralidade não é tarefa das mais complexas. Como bem nos ensina Carlos Ari Sundfeld:

“(…) o uso retórico de princípios muito vagos vem sendo um elemento facilitador e legitimador da superficialidade e do voluntarismo. E por que facilitador e legitimador? Porque belos princípios ninguém tem coragem de refutar, e muita gente se sente autorizada a tirar conclusões bem concretas apenas recitando fórmulas meio poéticas (aliás, de preferência muitas delas — como se enfileirar princípios, todos muito vagos, aumentasse a força da conclusão)”1.

Conquanto a problemática resida em várias searas do Direito, onde o julgador alcança fórmulas principiológicas para “ajeitar” uma ou outra decisão, o problema é muito mais grave — e se revela mais eloquente — quando envolve as chamadas sanções istrativas, maiormente contra os agentes políticos. A nós, importa-nos falar deste problema, já registrando, com a clareza e honestidade intelectual que se fazem necessárias, que a opinião aqui emitida não decorre unicamente da posição simplista e apaixonada de um advogado; encampa-se a uma dificuldade de maior envergadura, pois que para além das próprias idiossincrasias que circundam cada profissão.

Da descrição de um fato juridicamente relevante e da adequada motivação deve decorrer um pedido “entendível”. O juiz encontra-se, assim, jungido ao que é pedido, objeto este que é materialmente ligado aos fatos e fundamentos jurídicos que possam desaguar em alguma conclusão com respaldo no ordenamento jurídico.

Tirante a obviedade que é ínsita à congruência processual, há uma malfadada interpretação jurisprudencial conferida às ações civis públicas de improbidade istrativa, segundo a qual, resumidamente, contempla-se uma interpretação lógico-sistemática da petição inicial e do pedido. Dito de outro modo, não se aplica o princípio da congruência às petições iniciais envolvendo improbidade istrativa. É uma espécie de segunda chance àquele que propõe a ação, via de regra, o Ministério Público; trata-se de uma situação em que o julgador “a a mão na cabeça do autor da ação”, conferindo-lhe uma recuperação, como se a falha (gravíssima) fosse irrelevante.

Se do princípio da congruência decorre uma certa adstrição, que limita o julgador aos contornos definidos pelas partes, não podendo proferir decisão além, aquém ou fora dos limites da lide, a outra conclusão não se pode chegar que não a da improcedência do pedido, quando este não encontra coadunação com o que se descreveu nos fatos. A título de exemplo, basta imaginar que, se uma ação civil pública de improbidade istrativa pleiteia a condenação com base no artigo 10 da Lei 8.429/92 (lesão ao erário) e, ao final da instrução probatória, conclui-se que não houve dano, o pedido deve, inarredavelmente, ser julgado improcedente. Mas não é o que ocorre, pois quase sempre remanesce uma possibilidade de se condenar com base em violação a princípios.

De se ver, assim, que esse princípio da congruência, como acima já se destacou, encontra-se mitigado pela massiva jurisprudência, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, que entende pela interpretação lógico-sistemática do pedido.

Ainda no ano de 2014, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho proferiu decisão em que reconhece a necessidade de redução da sanção aplicada, porque, em se tratando de direito sancionador, o princípio se encontraria mitigado. Tal decisão, proferida sob a égide do C de 1973, foi publicada no Informativo de Jurisprudência 533, de 12 de fevereiro de 2014:

O tribunal pode reduzir o valor evidentemente excessivo ou desproporcional da pena de multa por ato de improbidade istrativa (art. 12 da Lei 8.429/1992), ainda que na apelação não tenha havido pedido expresso para sua redução. O efeito devolutivo da apelação, positivado no art. 515 do C, pode ser analisado sob duas óticas: em sua extensão e em profundidade. A respeito da extensão, leciona a doutrina que o grau de devolutividade é definido pelo recorrente nas razões de seu recurso. Trata-se da aplicação do princípio tantum devolutum quantum appellatum, valendo dizer que, nesses casos, a matéria a ser apreciada pelo tribunal é delimitada pelo que é submetido ao órgão ad quem a partir da amplitude das razões apresentadas no recurso. Assim, o objeto do julgamento pelo órgão ad quem pode ser igual ou menos extenso comparativamente ao julgamento do órgão a quo, mas nunca mais extenso. Apesar da regra da correlação ou congruência da decisão, prevista nos artigos 128 e 460 do C, pela qual o juiz está aos elementos objetivos da demanda, entende-se que, em se tratando de matéria de direito sancionador e revelando-se patente o excesso ou a desproporção da sanção aplicada, pode o Tribunal reduzi-la, ainda que não tenha sido alvo de impugnação recursal. REsp 1.293.624-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 5/12/2013.

Apesar da fundamentação do eminente relator, a decisão acima não trata de abrandamento do princípio da congruência, mas, sim, de aplicação do princípio da proporcionalidade, norma prevista no artigo 12, parágrafo único da Lei 8.429/92.

Nada obstante as confusões metodológicas e conceituais que se veem na jurisprudência, é assente nos tribunais a tese de mitigação do princípio da congruência em se tratando de ações de improbidade istrativa. Já neste ano de 2018, o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão em que reafirma a desnecessidade de o julgador observar os limites trazidos à lide e delimitados na própria petição inicial pelo autor da ação.

VII – Não há se falar em violação do princípio da congruência externa, afinal deve-se contemplar aquilo que se denominou jurisprudencialmente de interpretação lógico-sistemática da exordial. Assim, as sanções por ato ímprobo am a ser entendidas como pedidos implícitos (AgInt no REsp 1.628.455/ES, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/03/2018, DJe 12/03/2018) (grifamos).

O STJ entende que as sanções por ato ímprobo devem ser vistas como pedidos implícitos, pensamento este que não se coaduna com a melhor exegese que advém da própria Constituição Federal, a qual incute, sem qualquer peja ou limitação, a obediência irrestrita aos princípios do devido processo legal e, sobremais, da ampla defesa e do contraditório.

Como, então, poder-se falar em ampla defesa se o réu só pode se defender justamente daquilo que é traçado e aposto na petição inicial? É manifestamente ilegítimo, no modelo constitucional de processo civil, esse posicionamento jurisprudencial, eis que limita o espeque de defesa do réu na ação de improbidade, constituindo-se a decisão em fator inteiramente imprevisível — uma verdadeira loteria!

Tal posicionamento jurisprudencial até poderia ter uma vaga de existência na vigência do C de 1973, mas jamais pode ser tolerado sob os auspícios do vigente C de 2015, que refuta, de forma manifesta, a decisão surpresa: “Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.

É inquestionável a necessidade de se combater, de forma incansável, a malversação da coisa pública; todavia, os valores constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa e, mais que isso, segurança jurídica, devem ser de igual modo respeitados. Se a petição inicial não encontra com pedido em conformidade com a causa de pedir, não pode o Poder Judiciário figurar como professor de reforço do autor da ação. É preciso, portanto, repensar essa jurisprudência!

 

 

 

Autor: Guilherme Carvalho e Sousa é advogado, doutor em Direito istrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, vice-presidente da Associação Paulista de Direito istrativo (APDA) e ex-procurador de Estado.


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