Autores: Guilherme Cardoso Leite e Leonardo Pimentel Bueno (*)
O romancista francês Alexandre Dumas afirmou certa vez que “toda generalização é perigosa, inclusive esta”. É por isso que se assume que expressões como “onde há fumaça, há fogo!”; “bandido bom é bandido morto!”; “todo político é ladrão!”, dentre outras, embora ditas a todo tempo e em diversas circunstâncias, não apresentam compromisso algum com a consistência ou a coerência da assertiva — em verdade, nem sempre há fogo onde há fumaça; bandido bom não deve existir, nem vivo nem morto; até o advento de uma condenação judicial, nenhum político pode ser considerado ladrão. Não é difícil perceber que a afirmação generalizadora expõe a sua própria fragilidade, que é a afirmação generalizada, rasa, sem reflexão acerca de eventuais, e quase sempre evidentes, critérios de discrímen.
Uma afirmação generalizadora — perigosa, portanto — tem sido vociferada nos últimos dias pela equipe de procuradores da república responsável pela condução dos trabalhos do complexo processual conhecido como operação “lava jato”. Segundo aduzem, a lei que estabeleceu o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) — conhecida popularmente como “lei de repatriação” — teria criado uma “fantasia”, pois exigiria do contribuinte uma declaração que não seria verificada e conferida, e uma “caixa-preta que precisa ser investigada”, haja vista a limitação imposta pelo artigo 7º da Lei 13.254/16 à divulgação e ao compartilhamento de dados (aqui). Nesse sentido, seria criticável o fato de que “em plena operação ‘lava jato’, um ex-gerente da Petrobras fez a regularização cambial de dezenas de milhões de reais e não acendeu nenhuma luz vermelha no órgão fiscal”, conforme afirmações de um procurador da república (aqui).
As primeiras manifestações públicas mais incisivas contra o RERCT se deram com o advento da operação asfixia, no início do mês de maio (aqui e aqui), e estão a repercutir acentuadamente em razão das suspeitas de que teriam ocorrido tentativas de lavagem de dinheiro por investigados na operação “lava jato” a partir da indicação de ativos à Receita Federal e da formulação de pedido de adesão ao programa.
Na ocasião, e também com o ar do tempo (aqui), tem se presumido que pessoas e organizações empresariais investigadas por crimes de corrupção e correlatos estariam mesmo a utilizar a janela de regularização cambial e tributária para conferir aspecto de legalidade a ativos mantidos no exterior provenientes de atividades ilícitas.
Informação de relevo acerca deste assunto foi recentemente noticiada pela ConJur (aqui), que dá ciência da apresentação de denúncia contra “três ex-gerentes da Petrobras e mais três empresários sob acusação de desvio de R$ 150 milhões da petrolífera em obras da área de Gás e Energia (…) [acusados de terem] utilizado o programa de regularização cambial do governo federal para ocultar a origem de quase um terço desse valor”.
Ao encampar investidas desse jaez, os procuradores da república desconsideram premissas elementares do RERCT:
(i) a adesão ao programa exige que os bens e direitos declarados pelo contribuinte tenham origem comprovadamente lícita;
(ii) a declaração para adesão ao programa é apresentada sob condição resolutória, pendente que fica de posterior análise, conferência e homologação pela Receita Federal, tal qual a declaração anual de ajuste do imposto sobre a renda;
(iii) o contribuinte não gozará de forma definitiva dos benefícios do RERCT quando verificado que a origem do patrimônio declarado à regularização é ilícita;
(iv) o contribuinte que não tiver a sua declaração homologada no RERCT exporá patrimônio obtido ilicitamente à tributação regular (non olet), incluindo multas, e estará sujeito à medidas de persecução criminal; e
(v) o sigilo das informações prestadas e consideradas consistentes pela Receita Federal é o atrativo principal do programa e a justificativa para o seu sucesso na primeira etapa.
Conquanto se assuma que o RERCT não seja imune a “parasitas” e a sujeitos que objetivem se locupletar com o programa, a opção pela abertura à livre declaração pelo contribuinte evidencia um importante o rumo a um tratamento mais fiduciário que sancionatório por parte da União. Daí dizer que eventuais inconsistências nas declarações, como é o caso da percepção de indícios de pleitos que objetivam legalizar ativos auferidos de fontes ilícitas, o tratamento deve ser pontual, específico para o caso, e não geral e ir a todos os que aderiram ao programa. A maçã podre deve ser apartada de modo que não seja responsável pela contaminação de toda a fruteira.
As afirmações generalizadoras desconsideram o óbvio: o pedido de adesão ao RERCT pressupõe o enquadramento às suas condições e requisitos, em especial o de que deve ser lícita a origem dos ativos que se pretende regularizados no âmbito do programa. Uma vez que se trata de declaração sujeita a posterior homologação, cabe à Receita Federal apurar se as informações submetidas para o fim de adesão ao RERCT efetivamente se enquadram nos requisitos legais. Não enquadradas, as informações não receberão o tratamento especial do programa e poderão ser utilizadas inclusive para fins de persecução criminal. Considerada a criação de um núcleo funcional para a análise dos requerimentos de adesão ao RERCT, o o às informações deve ser , de modo que tal mister não cabe ao Ministério Público, aos auditores fiscais que não integram o núcleo ou ao Poder Judiciário.
A par de eventuais críticas à finalidade do RERCT (ver aqui), a “grita” generalizadora dos procuradores da república relativamente aos seus efeitos desconsidera que “pessoas de bem”, sem qualquer relação com atividades criminosas, podem se beneficiar com a adesão ao programa (ver aqui). Esse é o caso de servidores dos serviços de relações internacionais ou de militares que são encaminhados a missões no exterior e por lá auferem algum patrimônio que, independente do motivo, não foi declarado às autoridades brasileiras; ou mesmo de servidores públicos ou de trabalhadores em geral que am um período de formação em outros países e que deixam por lá algum patrimônio construído; ou, ainda, a descoberta de herança no exterior correspondente a patrimônio não declarado no Brasil pelo de cujus.
A regularização proposta pelo RERCT proporciona efetivo ganho ao erário e à sociedade, perceptível com o aumento da arrecadação tributária, com a obtenção de informações específicas sobre algumas operações, com a regularização ou a internalização de patrimônio e com a possibilidade de que sujeitos excluídos do RERCT em razão de inconsistências em suas declarações ou do não atendimento aos requisitos da adesão sejam investigados a fundo a partir das informações prestadas.
No momento em que a operação “lava jato” estaria a sofrer alguns reveses ou ajustes em sua truculenta condução, o que se quer é buscar apoio popular à sanha de investigar a qualquer preço, inclusive à revelia da segurança jurídica, da confiança do contribuinte e da previsibilidade normativa. Ataca-se, por isso, o principal motivo de sucesso do RERCT, que é o absoluto sigilo de informações e a vedação à divulgação e ao compartilhamento dos dados apresentados pelos contribuintes nos requerimentos de adesão ao programa. O mote para tanto é a edição da Nota Arrecadação 006/2017 da Receita Federal e a afirmação, pela própria autoridade tributária, de que nem todos os auditores fiscais terão o às informações, que serão analisadas por um núcleo específico criado para lidar com os pedidos de adesão ao RERCT (ver aqui).
O comportamento de criticar todo o programa do RERCT em razão de suspeitas pontuais e de colocar em xeque o seu principal atrativo beira à máxima do utilitarismo benthamiano: agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar. Ou seja, pouco importam as garantias atreladas ao sigilo fiscal dos contribuintes que foram atraídos ao RERCT exatamente pelo compromisso do sigilo, desde que a exposição dos dados informados pelo contribuinte possa proporcionar a investigação da sua vida e da vida de outrem. Fosse assim, não haveria adesão ao programa, bem sabemos. As críticas que podem ser feitas a esse comportamento equivalem à algumas das críticas feitas à minguada filosofia utilitarista: não se sabe que bem-estar perseguido é esse e não se verifica finitude e certeza nas consequências acarretadas pelas ações dos procuradores da república.
Uma vez que toda generalização é perigosa, é igualmente perigoso atestar que o RERCT está a operar sem riscos de ser utilizado indevidamente. Todavia, os ativos de origem ilícita que forem incluídos no programa não estão e não têm possibilidade de permanecerem definitivamente protegidos pelos benefícios inseridos na lei, ainda que tenham sido indicados no pedido de adesão ao RERCT. Esse é um dos motivos que justificam o programa de “repatriação”: a efetiva adesão somente ocorrerá com a homologação da declaração pelos contribuintes. Se, embora internalizado o patrimônio, houver a sua movimentação e esgotamento, a União possui meios próprios para perseguir tributos e encargos regulares não recolhidos.
A repatriação é boa para o Brasil e traz à tona muitos investimentos e ativos que não foram declarados anteriormente pelos contribuintes. Isso permitirá o incremento da arrecadação fiscal, a entrada de moeda estrangeira no país e promoverá a transparência fiscal, em convergência com uma agenda global. A primeira edição do programa de regularização de recursos no exterior foi bem sucedida e gerou o ingresso de US$ 10 bilhões no país, segundo o Banco Central. E a Receita Federal do Brasil anunciou a arrecadação de quase R$ 50 bilhões com a cobrança de impostos e multas. Sem o programa, essa arrecadação não teria ocorrido.
Autores: Guilherme Cardoso Leite é advogado, sócio do escritório Machado, Leite e Bueno Advogados, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito Tributário pelo IBET.
Leonardo Pimentel Bueno é sócio do escritório Machado, Leite e Bueno Advogados, mestre (LL.M.) em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Leiden, Holanda.